Marcus Liborio |
A espera é longa para entrar e alguns se deitam em qualquer canto para relaxar depois de um dia inteiro perambulando pelas ruas sob o sol escaldante |
Há uma semana, Fabrício Gabriel Novaes dos Santos, 27, vagava pelas ruas de Bauru quando encontrou o filho de 8 anos. O menino se espantou com a aparência do pai e, preocupado, pediu que ele se cuidasse. Em outro ponto da cidade, Sidnei (nome fictício) ajudava a empurrar o carro de um desconhecido enquanto procurava emprego de soldador. A boa ação pode lhe render ajuda para arrumar moradia. Na cidade de Tupã, Edmundo Ferreira, 63, deixava uma casa de acolhimento com planos de viajar para outros municípios da região.
São 18h20 da última quinta-feira no Albergue Noturno de Bauru e a fila já é grande. Entre os 51 pretendentes à vaga para pernoite, Fabrício, Sidnei e Edmundo seguem no aguardo, além deste repórter que vos escreve. Fui passar uma noite no albergue para conferir de perto a rotina da entidade mantida pelo Centro Espírita Amor e Caridade (Ceac), que completa 67 anos de atividades exatamente hoje (leia mais abaixo).
Na sala de recepção, descubro que só entraremos para o banho às 20h. A espera é longa e vejo dois jovens deitados ao chão, depois de um dia inteiro perambulando pelas ruas sob o sol escaldante que assolou os bauruenses nesta quinta. Aquilo tudo é muito diferente para mim.
Em um banco de madeira, reparo um senhor bem vestido: camisa social listrada, calça jeans e sapato preto. Nos pulsos, relógio e pulseira prateados. Sento-me ao lado e me apresento, mas não falo que sou repórter. Educado, ele interage: “Me chamo Edmundo. Vamos entrar às 20h, tomar banho, jantar e dormir”, elenca, com propriedade de quem conhece o esquema há muito tempo.
Marcus Liborio |
Incentivado pelo filho de 8 anos, Fabrício dos Santos saiu das ruas e pediu ajuda no Albergue Noturno: esperança por dias melhores |
Para ser mais exato, há cerca de 10 anos, quando ele deixou a casa onde morava com os irmãos, em Garça, para viver nas ruas. “Você colocaria a sua mãe num asilo? Meus irmãos queriam colocar ela. Mas, cuidei dela (mãe) até a sua morte, aos 100 anos”, lembra, emocionado. Por conta das brigas com um dos irmãos, Edmundo decidiu sair de casa.
“No começo, sofri bastante. Cheguei a perder a visão nas ruas de tanta fome, até que um homem alertou que eu ia acabar morrendo. Aprendi a ‘andar no trecho’ e não parei mais”, conta o jardineiro, garantindo não ter vício algum e ser feliz do jeito que está. “Gosto dessa liberdade. Não tenho sonhos. O que o dia me trouxer está ótimo”.
BANHO
Com uma lista em mãos, um dos funcionários começa a chamada para o banho. Depois de quase duas horas na salinha de espera, é visível a expressão de cansaço de todos. Ouço alguém dizer que está com fome. Eu, que havia almoçado às 14h, já ouvia a minha barriga roncar vez ou outra.
Depois de entregar tudo que tinha em meu bolso, incluindo o celular, recebo o “kit banho-cama”. Em um banquinho verde, me acomodo para esperar a minha vez. Ao meu lado, vejo um rapaz de boné vermelho tirando e botando o adereço da cabeça a todo instante.
Percebo a sua ansiedade e pergunto se é a primeira noite dele no albergue. Ele diz que está há três semanas em Bauru à procura de trabalho como soldador e o Albergue Noturno tem sido o seu porto seguro. “Ajudei um homem a empurrar o carro esses dias e ele disse que, talvez, eu possa dividir aluguel de uma casa com o irmão dele. Espero que dê certo”.
Neste momento, sou chamado por um monitor, que me acompanha até um dos banheiros. Para a minha surpresa, o banho é individual. Tenho que tirar toda a roupa e colocá-la em uma sacolinha. A partir de então, passo a vestir somente o uniforme da entidade: calção azul, camiseta (também azul) e um par de chinelos de dedo quatro números maior que o meu.
Penso que o fato renderia boas piadas entre meus amigos, mas também lembro de dois homens descalços na recepção, que só teriam algo para colocar nos pés naquele dia graças ao tal chinelo – seja ele maior ou menor.
ÚNICA REFEIÇÃO
Na cozinha, reparo que há quatro mesas. A última é reservada para abrigadas do sexo feminino. Naquela noite, entretanto, só haviam três mulheres para pernoitar no Albergue.
Ao me sentar, recebo, de uma das cozinheiras, um prato farto e uma colher. O cardápio: arroz, feijão, macarrão, linguiça frita e beterraba, além de suco de tangerina.
À minha frente, um jovem come com certa pressa. Descubro, então, que aquela era sua primeira refeição do dia. “É dolorido esperar tanto tempo pra comer”, diz. Aquilo tudo é muito diferente pra mim.
NOITE LONGA
Todos são encaminhados para os dormitórios após o jantar. Pelos meus cálculos, devia ser umas 21h. Ao todo, são três quartos bem espaçosos, com um banheiro ao final do corredor e dois galões de água próximos à porta de saída.
Ao me deitar na cama “31M”, pude contar 11 beliches somente no meu quarto. O clima, ali, era de descontração. Um grupo de amigos competia quem tirava mais sarro do outro. O João Lorenzetti, por exemplo, virou João do Chuveiro – em alusão à marca do equipamento.
Era como se fosse uma grande família. A alegria do ambiente parecia dissolver, pelo menos naquele momento, qualquer lembrança ruim das ruas e das dificuldades que viriam ao amanhecer. Um religioso passou pelos dormitórios e fez uma oração, tornando ainda mais evidente o olhar de esperança no rosto de cada um.
As luzes se apagaram por volta das 22h e o silêncio predominou. Estou acostumado a dormir depois da meia-noite e ter TV e celular à disposição. Confesso que foi uma das noites mais longas da minha vida. Tanto que me virei diversas vezes na cama e devo ter incomodado o colega que descansava na parte de cima do beliche.
Mas, qual a razão de tamanho incômodo? Eu estava em um leito confortável, tinha um teto sobre a minha cabeça e dispunha de ventiladores para aliviar o calor de quase 30 graus que fazia naquela noite.
Ao meu redor, percebo que todos dormiam tranquilamente. Fato é que a maioria ali nem sempre consegue desfrutar de tal conforto e acolhimento, os quais pudemos usufruir até as 7h, quando vestimos nossa roupa, tomamos café e seguimos rumos bastante distintos.
Aquilo tudo é muito diferente para mim. Aquilo tudo é muito diferente para eles. A mudança, contudo, está na realidade de cada um.
‘Tocou meu coração’
Fabrício dos Santos vive ao relento há um ano, desde a separação com a esposa. Pai de dois meninos (um de 3 anos e outro de 8), encontrou o mais velho pelas ruas de Bauru na semana passada e o episódio o fez refletir sobre suas atitudes.
“Ele ficou assustado ao me ver. Disse que eu precisava me cuidar. Aquilo tocou o meu coração e, no mesmo dia, procurei o Albergue Noturno. Agora, serei encaminhado para programas assistenciais da prefeitura”, conta, exibindo quadros que passou a pintar na entidade.
Programação especial
Éder Azevedo/JC Imagens |
Francine Tamos: ‘Em 67 anos, mudamos muito, mas motivação continua a mesma’ |
O Albergue Noturno completa 67 anos hoje. Para celebrar a data, a entidade oferecerá um café da manhã com bolo nesta segunda, além de promover uma exposição de artesanatos feitos pelos próprios acolhidos (quadros, tapetes, luminárias, entre outros).
“A exposição ficará a semana toda para quem quiser ver, comprar ou conhecer o trabalho”, destaca a coordenadora do Albergue, Francine Tamos.
Ela comenta sobre o processo de evolução da entidade ao longo de mais de seis décadas. “Em 67 anos, mudamos muito, crescemos, nos aperfeiçoamos e a motivação continua a mesma: acolher com amor os necessitados. Tenho certeza que fazemos isso com excelência”.
SERVIÇO
O Albergue Noturno fica na rua Inconfidência, 7-18, Vila Vergueiro, próximo ao Terminal Rodoviário. O telefone é o (14) 3222-4881.